Dando continuidade, a nossa série de artigos mensais, publicados na Revista Espirito Livre, capitaneados por João Fernando, do Espírito Livre, vem se tornando uma das mais conceituadas “fanzines” na área de TI, com foco em software livre do país. Parabéns a todos pela competência e qualidade da revista. Na coluna educação temos, o relato de projeto educativo que foi apresentado no SBIE – Simposio Brasileiro de Informática na Educação (maior evento de informatica educativa do país), aqui teremos o artigo completo, com detalhes de implementação, mostrando a viabilidade técnica e pedagogica do software livre na escola. Boa Leitura!
Implementando projetos educativos inovadores com software livre
by Sinara Duarte
Fonte: ROCHA, SSD. Implementando projetos educativos inovadores com software livre. Revista Espirito Livre. ano 1. n.5 agosto/2009. Edição Online disponível em <http://revista.espiritolivre.org> Acesso em DD/MM/AAAA.
Toca o sinal. O professor chega na sala de aula, faz a chamada, pede silêncio, escreve alguns apontados no quadro, faz alguns comentários, passa a atividade de casa, e já se passaram 50 minutos. Toca o sinal. Lá vem outro professor, faz a chamada, pede silêncio, escreve alguns apontamentos… Enfim, quem trabalha em escolas, de qualquer lugar do país, sabe que essa é a rotina diária da maioria dos estudantes das séries terminais, com raras exceções.
Para um jovem de 12, 14 anos, ávidos de curiosidade e energia, passar quatro horas passivelmente sentado, ouvindo o professor falar é um ato de “tortura”. O pior de tudo, é ainda levar o nome de indisciplinado e desatento, como se a culpa fosse dele. E pense, que estamos nos tempos modernos, pois até poucas décadas as cadeiras escolares eram aparafusadas ao chão para facilitar a organização da sala de aula!
Para os professores também é igualmente difícil repetir o mesmo conteúdo, por anos a fio, com o mesmo entusiasmo da primeira vez. Quem atua no ensino público, sabe muito bem do que eu estou falando: turmas numerosas, currículos engessados, professores sobrecarregados, cobranças de todas as partes, turmas muito heterogêneas, indisciplina, falta de recursos, desde o básico como papel até o mais avançado, como internet na escola, por exemplo.
Enfim, o fato é que quanto mais se avança nos anos escolares, mais difícil é manter a motivação. A ciência e a experiência provam que todo ser humano é curioso, principalmente quando crianças ou adolescentes. Se a curiosidade é inata ao jovem porque na escola, parecem tão desmotivados? E o mais importante: Como mudar essa realidade? Como despertar a curiosidade adormecida e mobilizar as energias juvenil para algo produtivo? Como ser criativo e inovador neste contexto?
São perguntas difíceis de responder. Na educação não existe fórmulas prontas nem mágicas. Cada escola, cada professor, cada aluno é singular. Esse é o nosso desafio diário!
Muitos acreditam que a introdução da tecnologia pode de fato revolucionar a sala de aula. De fato, a utilização da tecnologia no ambiente escolar contribui para essa mudança de paradigmas, sobretudo, para o aumento da motivação em aprender, pois as ferramentas de informática exercem um enorme fascínio em nossos alunos. Todavia, o computador não é uma panaceia para todos os problemas educacionais, pelo contrário é um grande aliado, mas sozinha, a tecnologia não é capaz de mudar nada. O grande mentor das revoluções educacionais ainda é o professor.
O laboratório de informática educativa (LIE) é ambiente propício para o nascimento de idéias inovadoras. Até o nome é perfeito: Laboratório. Não é uma sala informatizada, pois qualquer sala assim pode ser, basta equipar com tudo de mais moderno e high tech da atualidade.
Já o laboratório é um local diferente da sala de aula convencional, foi idealizado para pesquisa, para manipulação de dados, experimentação de hipóteses, onde ora acertamos, ora erramos, mas sempre recomeçamos. Um verdadeiro convite a subversão!
Ao implementar projetos de aprendizagem por meio da incorporação das TICs – Tecnologias de Educação e Comunicação, o professor passa a ser um estimulador e facilitador da aprendizagem de seus alunos e estes passam a ser verdadeiros pesquisadores, sujeitos ativos, reflexivos e cidadãos conscientes de seu papel na sociedade, atuantes e participativos.
Trabalhar com projetos é uma forma de ressignificar o espaço de educativo. O aluno sai do papel de figurante para protagonista da própria aprendizagem, participando ativamente do próprio aprendizado, por meio da experimentação, da pesquisa em grupo, do estímulo à dúvida, enfim, o aluno se envolve mais e aprende muito mais do que aprenderia numa situação de simples receptor de informações. Na pedagogia de projetos o aluno é instigado a produzir e acaba por desenvolver a capacidade de selecionar, organizar, priorizar, analisar, sintetizar, tão necessária nos dias atuais.
Dentro desta perspectiva, o professor assume papéis diferenciados na promoção do desenvolvimento e aprendizado dos alunos. Este é ao mesmo tempo propiciador de atividades, situações e recursos que levem o aluno a aprender a aprender, e também mediador no processo ensino-aprendizagem. Deixando de ser mero transmissor de conhecimento, para mediador, levando o aluno a uma atitude positiva frente ao conhecimento, despertando-lhe o interesse e sugerindo-lhe situações que o motivem a aprender.
E o que o software livre tem haver com isso? O software livre tem uma grande parcela de culpa nesta revolução. Primeiro, porque oferece uma gama de softwares nas mais diversas áreas de atuação, que podem ser livremente, baixados, copiados, replicados, alterados e adequados a dinâmica escolar.
Assim, é possível construir novas civilizações, viajar no cosmos, desvendar os mistérios da ciência, aprender novas formas de se comunicar, vivenciar o inusitado, enfim, como dizia a abertura de uma famosa série ficcional “audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve…”Como diria o Dr. Spock: Vida longa e próspera ao software livre!
Ao adotar o software livre no contexto educativo, contribuímos para a democratização do saber, diminuindo o grande fosso da exclusão digital. Deixamos de ser reféns da tecnologia proprietária e principalmente da dependência hegemônica americana, nos libertando dos grandes monopólios.
Poderia passar horas a fio, explicitando as razões porque adotar o software livre na escola, mas vamos logo ao que interessa.
Um dos projetos desenvolvidos que vem contribuindo para resignificar a aprendizagem chama-se Minha Escola, Minha vida. Idealizado inicialmente pela professora Liduina Vidal (Fortaleza-CE), depois adaptado pela professora Sinara Duarte. Por descrever uma experiência educacional que tem como eixo estruturante a inclusão digital, faz-se necessário abordar o contexto sócio-político onde o mesmo foi realizada.
O referido projeto foi realizado em uma escola pública educativa localizada em um bairro periférico da capital cearense marcado por graves problemas sociais como: altos índices de prostituição, consumo de drogas, violência doméstica e acidentes de trânsito aliada a baixa escolaridade da sua população de forma geral.
O principal objetivo foi sensibilizar jovens em alta situação de vulnerabilidade social acerca de sua importância enquanto sujeito histórico-social e da escola como partícipe deste processo através do uso das TICs em uma plataforma livre. A intensão é que os jovens concludentes do ensino fundamental, pudessem produzir material midiático, utilizando as ferramentas livres, e principalmente valorizasse o ambiente escolar, dando continuidade a sua escolarização. Muitos questionavam: “Estudar para que? Se nada vai mudar na minha vida”, ou “eu não tenho sonhos.” É triste constatar que pessoas tão jovens possam acreditar que não possuem chances de modificar sua realidade ou mesmo que se tornem dependentes da ideologia dominante.
Diante desta problemática, surgiu o projeto Minha Escola, Minha Vida que tem como premissa básica: a liberdade de produzir o conhecimento. O referido projeto foi desenvolvido em seis etapas: planejamento coletivo, pesquisa textual, sessão de fotos, edição e produção, oficinas e divulgação.
A primeira etapa envolveu o planejamento coletivo do trabalho. Os alunos concludentes do ensino fundamental, juntos com a professora do LIE e de Literatura, planejaram o formato do projeto que deveria a ser desenvolvido dentro dos recursos disponíveis. Como a escola não dispunha de uma filmadora nem similar, foi acordado uma apresentação (audiovisual) em formato de slides (fotos e textos usando o Br-Office). Cada aluno teria dois slides para falar de suas experiências, enquanto sujeito histórico-social e sua relação com o ambiente escolar, sendo que ao final, seria produzido um photobook com todas as apresentações em formato de álbum virtual coletivo.
A segunda etapa foi de pesquisa e produção textual. Os alunos foram motivados a pesquisar sobre sua vida acadêmica e a função social da escola, por meio de entrevistas com os pais e funcionários da escola, produzindo textos acerca destas temáticas.
A terceira etapa foi a sessão de fotos. Para ilustrar o photobook, optou-se por fotografar individualmente todos os formandos do 9º ano, funcionários da escola (corpo gestor, administrativo, apoio e docente) além dos fatos considerados mais relevantes dentro da trajetória escolar.
A quarta etapa foi a edição e elaboração da mídia (photobook). Depois de criados os slides no BrOffice Impress, os alunos foram desafiados a criar e editar um projeto audiovisual utilizando as ferramentas livres, de forma que possibilitasse a gravação em formato de DVD/VCD. Ressalta-se que a escolha do tipo de mídia levou em consideração o fato de que todos os alunos possuíam aparelho de DVD e que havia interesse da maioria, em apresentar sua produção para os familiares, portanto seria a forma mais acessível e democrática de divulgação, enquanto que poucos tinham acesso a computadores conectados a rede mundial de computadores. Mesmo assim, ficou acordado que a produção também seria colocada na Web, por meio do blog pessoal da professora Sinara Duarte.
Os principais recursos utilizados foram máquina fotográfica digital, computador com Sistema Operacional Linux Kurumin (versão 7.0) instalado e acesso a Internet, CDs virgem, televisão e aparelho de DVD. Para criação, edição e ilustração do vídeo utilizaram-se as seguintes ferramentas computacionais livres: BrOffice Writer (editor de texto) BrOffice Impress (confecção de slides), Kdenlive (edição de video), KolorPaint (Desenho), Gimp (editor de foto), Mozilla-Firefox (software de navegação na Web), fotos do arquivo particular da escola e dos alunos.
A quinta etapa foi a participação em oficinas de Inclusão Sócio-Digital. Portanto, paralelo a produção do photobook, os alunos também participaram de oficinas de informática básica, visando o domínio das ferramentas tecnológicas. Ressalta-se que foi utilizado, exclusivamente o software livre, nas oficinas práticas.
A sexta e última etapa foi a culminância do projeto e ocorreu na solenidade de formatura do término do curso do ensino fundamental, no qual houve a exposição da produção coletiva (DVD) para a comunidade escolar. Ao final, cada aluno foi presenteado com uma mídia com o resultado do trabalho.
A experiência foi desenvolvida no Laboratório de Informática Educativa – LIE da referida escola, no contra-turno escolar no período de dezembro de 2007 a fevereiro de 2008, totalizando cerca de 80 horas e atendeu cerca de 57 adolescentes. Durante este período, percebeu-se a dicotomia existente entre os que já possuíam algum conhecimento de informática e os que não possuíam nenhum conhecimento. Os primeiros conseguiam concluir rapidamente suas atividades, porém permaneciam no LIE, ajudando os colegas, exercendo sua solidariedade e cooperação, características inatas do movimento do software livre.
Geralmente os que sentiam mais dificuldade preferiam o contato com os colegas, do que a mediação docente. Outros tiveram mais preocupação com o layout, dedicando muito tempo a decoração dos slides. A escolha das imagens e gifs refletiam de certa forma a vivência e história sócio-cultural dos educandos, por isso era recorrente imagens de personagens de histórias em quadrinhos, heróis de filmes de ação, bandeiras e símbolos de times nacionais, atores e cantores nacionais e internacionais.
Apesar da aparente “desorganização”, os alunos conseguiram dentro das limitações temporais e espaciais desenvolver autonomia na criação da multimídia. A intervenção dos professores só ocorria quando alguma dispersão atrapalhava o grupo de forma generalizada de forma a impossibilitar a feitura das atividades propostas. Os alunos também foram instruídos de que as atividades propostas não valeriam pontos, nem qualquer complemento na média bimestral de cada aluno e que seria uma nova forma de construir o conhecimento, visto que seriam desafiados a construir algo novo de forma coletiva (multimídia), que posteriormente também seria compartilhada com a comunidade escolar. Desta forma, a avaliação foi contínua e formativa, ocorrendo durante o desenvolvimento de todas as etapas do projeto. O objetivo maior não era controlar ou qualificar os estudantes, mas ajudá-los a progredirem na busca do conhecimento. Assim,foi privilegiada a abordagem sócio-interacionista na qual cada participante foi sujeito de sua própria aprendizagem, destacando-se o “aprender fazer fazendo”, estimulando-se a aprendizagem cooperativa e colaborativa.
O professor do LIE desempenhou a função de mediador do conhecimento, criando situações problemas para que o aluno pudesse desenvolver suas potencialidades e construir sua autonomia na construção do conhecimento e no manuseio dos softwares livres.
Os resultados encontrados foram acima das expectativas. Os alunos outrora, considerados desmotivados e desinteressados, mostraram-se bastante motivados e engajados em construir algo único. De fato, organizar e implantar abordagens educacionais que vão ao encontro das necessidades dos educandos, desenvolvendo estratégias de ensino centradas no aprendiz, enfatizando a autonomia, acomodando a diversidade e maximizando as oportunidades para o sucesso e as conquistas pessoais é condição sine qua non do professor na contemporaneidade.
O fazer docente por meio da adoção da tecnologia no ambiente educacional, capacita os professores a um novo agir no ensino, tornando o processo educativo mais dinâmico e atraente. Incluir não deve ser apenas uma simples ação de formação técnica dos aplicativos, como acontece na maioria dos projetos, mas um trabalho de desenvolvimento das habilidades cognitivas, transformando informação em conhecimento, transformando utilização em apropriação. A reflexão crítica da sociedade deverá gerar práticas criativas de recusa de todas as formas de exclusão social.
Por meio de projetos como este, o aluno é preparado não apenas para ser usuário de ferramentas tecnológicas, mas também para ser capaz de criar, resolver problemas e usar os vários tipos de tecnologias existentes de forma racional, eficiente e significativa. Não se trata do professor ensinar tecnologia, mas de utilizar o recurso tecnológico como fator de motivação para, a partir do interesse, levando o aluno à construção do seu próprio conhecimento.
Essa é a essência do software livre: a possibilidade seu potencial transformador, visto que envolve a participação coletiva e a emancipação dos seres humanos. A aparente fragilidade das pequenas iniciativas, como esta têm indicado a viabilidade da inclusão digital nas escolas brasileiras, o que reforça o discurso de que a implementação de uma escola de qualidade, que é igualitária, justa e acolhedora para todos, não é um sonho impossível.
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